segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Pesca do bacalhau: "As sepulturas esquecidas"

Depois de uma presença de séculos na região e do impulso dado pelo Estado Novo à chamada Faina Maior, está por fazer a história desses homens que foram deixados para trás em St. John’s, noutros portos da América do Norte e na Gronelândia. Dionísio Esteves, de Vila Praia de Âncora, Caminha, vai ser o “rosto” deles, graças a um filme que nos permite perceber onde foi enterrado há precisamente 48 anos.


A imagem é de 1966, de 6 de Maio. Num cemitério semiapagado pelo nevoeiro, homens apertados nos seus fatos e gravatas, de ar abatido, escutam orações num inglês que mal entendem, mas cuja cadência reconhecem. Alguns balbuciam as suas preces em português, como se Dionísio Esteves, o que ali está a ser enterrado, melhor fosse encomendado aos céus na sua língua materna. São de pescadores todos estes rostos captados num documentário, 1966 — O Navio Branco, que Hector Lemieux filmou para o National Film Board do Canadá. Nesse ano, o capitão Vitorino Ramalheira e a tripulação do Santa Maria Manuela recuperaram dois homens perdidos no nevoeiro. Mas viram morrer, num acidente de trabalho, o jovem de Vila Praia de Âncora, Caminha. 
Dionísio entrara como “verde” no Santa Maria Manuela em 1960. Segundo a lei, ao completar a sua sétima viagem consecutiva na Pesca do Bacalhau, livrava-se do serviço militar obrigatório e foi com esse espírito que, aos 26 anos, partiu de Lisboa, com a bênção de Salazar e da Igreja, naquela Primavera, num dos famosos veleiros do que ainda restava da chamada Frota Branca portuguesa. Assim baptizada desde que, para assinalar a neutralidade do país, se teve de pintar de branco os navios, na II Guerra. Dionísio ainda tentou levar o irmão Fernando com ele. Mas era duríssima a vida nos dóris, esses botes de um homem só, em que os portugueses da pesca à linha trabalhavam em troca de um salário dependente de quanto pescassem ao longo de seis meses, e o rapaz de 18 anos, já homem feito e com bastante experiência de mar, mas na costa portuguesa, achava-se novo para aquilo.
Vitorino Ramalheira mantém viva, aos 85 anos, a memória do temporal que apanharam, entre os Açores e o Canadá, no final de Abril desse ano. Dionísio ficou gravemente ferido quando, arrastado pelo mar no convés durante uma manobra, terá embatido num ferro. “Foi na esquina do tanque do óleo do bacalhau”, precisa Manuel Agonia Cancuja Marques, o Nia Cancuja, um dos pescadores de Caxinas e Poça da Barca, Vila do Conde, que trabalhavam naquele mesmo navio. O Gil Eannes estava ainda em Lisboa. Ramalheira ponderou voltar para trás, e deixar o homem nas Ilhas, mas desconfiou da qualidade dos cuidados que ali lhe poderiam ser prestados, explica à Revista 2, justificando, assim, a opção de seguir viagem para a Terra Nova. “E na verdade também nem tínhamos noção da gravidade dos ferimentos, que eram internos”, acrescenta o capitão.
“O navio andava pouco. Ainda não tinha motor auxiliar, demoramos uns três dias a chegar a St. John’s”, contabiliza Nia Cancuja. Acompanhado por um enfermeiro, Dionísio agoniava em silêncio, “no beliche, sem dar uma fala a ninguém” — diz o companheiro, já comovido pela memória — até acabar por morrer na véspera da chegada a terra, a 5 de Maio. “O que nos botava em choque era ter de passar por ele, e ele ali, morto.” No navio, estes tensos momentos de viagem foram poeticamente captados por Rex Tasker, que escreveu e produziu o documentário de Lemieux. “À noite chega o momento da chora” — the soup of sorrow, traduz livre e apropriadamente para inglês o narrador, voz a quebrar um plano silencioso na mesa do rancho. “Diz-se que quem a come voltará aos Bancos [da Terra Nova]. Dionísio não a comerá. Recém-casado, esmagado por uma onda, o seu corpo segue num caixão.”
Nesse dia 5 de Maio, o irmão de Dionísio, Fernando Esteves, acabara de chegar ao portinho de Âncora quando o mandaram de imediato para casa, no bairro dos pescadores, ali a poucos metros, aliviando-o do trabalho de descarga do peixe. Desconfiou. “Quando cheguei, já estava tudo aos gritos”, revive. Alguém os tinha vindo avisar da capitania, para onde eram enviados os telegramas. Cristina, a mulher de Dionísio, enviuvava em seis meses, já grávida de uma filha, Cândida, que nunca chegaria a conhecer o pai. França, para onde emigraram mais tarde, deixou-as mais longe daquela desgraça que vem nas letras pequenas de qualquer contrato de casamento com um pescador, numa cláusula dependente dos humores do mar. O cemitério católico de São João da Terra Nova, onde o tripulante do Santa Maria Manuela foi enterrado, está cheio destas histórias, várias delas portuguesas.
Direito a uma campa
Presença constante nos Grandes Bancos há vários séculos, muitos portugueses foram sendo enterrados na Terra Nova, principalmente em St. Jonh’s, e em outros portos da costa canadiana e da Gronelândia, como acontece aliás com marinheiros das muitas nações que frequentavam, em meados do século XX, aqueles mares. Em Mount Carmel, nos arrabaldes da capital provincial e cidade-abrigo da frota portuguesa, uma placa assinala por exemplo a vala comum de 11 dos 15 fogueiros lusos do SS Florizel, um ferry a vapor que se afundou a 24 de Fevereiro de 1918, quando iniciava mais uma ligação a Nova Iorque. Morreram 93 pessoas. Outros portugueses, muitos deles pescadores de bacalhau, foram sepultados no mesmo local, em número indeterminado, mas o passar dos anos, as intempéries e o abandono deixaram sem identificação as sepulturas, adornadas normalmente com uma frágil cruz em madeira. 
“Os cemitérios deles não são como os nossos. Aquilo é um campo”, descreve Fernando Esteves. Mas ainda assim, Dionísio e os que por lá foram enterrados ainda tiveram direito a uma campa. Outros foram levados pelo mar: que os engolia à socapa, ao abrigo da névoa que se abatia repentina sobre os dóris, ou que os arrastava borda fora dos lugres, como aconteceu no final da década de 50 com Armando Afonso do Águas Santas, outro pescador de Âncora, e um dos vários mortos na Faina Maior a quem o dramaturgo Bernardo Santareno dedicou o seu livro de crónicas marítimas, Nos Mares do Fim do Mundo. Escrita quando o autor viajou como médico da frota bacalhoeira, em 1957 e 1958, a obra, que foge ao registo épico das epopeias marítimas, concentra-se nos episódios quotidianos dos que viviam a bordo em condições absolutamente precárias, no limite do  “aceno da morte” e à mercê, muitas vezes, do seu “beijo gelado”.
Durante o Estado Novo, período em que a pesca do bacalhau foi submetida a uma organização corporativa que tudo controlava, sob a omnipresença de Henrique Tenreiro, um delegado-geral das Pescas com mais poderes do que os ministros do sector com quem conviveu, os pescadores, na verdade, contavam pouco. Percebeu-se isso logo em 1937. Nesse ano, milhares participaram numa greve em que contestavam as condições impostas pelo regime — por via do recém-criado Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau — que os obrigava a se inscreverem no mesmo navio da campanha anterior, o que acabava com a concorrência, entre armadores, pelos melhores pescadores e nivelava os salários para valores tabelados. A paralisação durou semanas, mas os homens acabaram mobilizados à força, após intervenção policial em várias comunidades. Alguns saíram directamente da prisão para os navios, conta o investigador Álvaro Garrido em O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau
Os navios eram, assim, uma extensão do país. Seguindo à boleia das palavras de Bernardo Santareno, nas viagens de seis meses da pesca à linha, os capitães exerciam uma disciplina férrea para conseguirem controlar os humores de dezenas de homens rudes, quase todos de proveniência humilde e com baixas qualificações, capazes de gestos extremos de solidariedade e, ao mesmo tempo, prontos para se pegarem por qualquer insignificância. Estes ansiavam por regressar a casa com o melhor salário possível, o que dependia dos conhecimentos de quem os comandava e teria de os levar aos melhores pesqueiros e, aí chegados, da sua sagacidade e destreza no manejo das linhas de múltiplos anzóis. 
O objectivo era encher o porão com bacalhau antes de o Inverno se insinuar, gelando o próprio mar, no caso da Gronelândia. Submetidos a jornadas de trabalho que podiam, por vezes, passar as 20 horas, que o descanso só chegava depois de escalado e salgado o peixe, os pescadores acordavam às 4h, com uma oração, para se lançarem de novo ao mar pouco depois, naquelas “cascas de nozes” que tripulavam sozinhos. Os próprios assumem que nem sempre tinham cuidado. Muitos afastavam-se demais, arriscavam por vezes demais. 
“Como capitão, a minha maior preocupação era não perder nenhum homem. Tentava mantê-los por perto, que o tempo às vezes mudava rapidamente. Mas eles iam, como se nada fosse, contentes por poderem pescar. Eles eram um heróis. Quando era novo, também tinha aquela adrenalina e fazíamos as coisas naturalmente, mas agora, passados estes anos, digo-o: eles é que eram os heróis”, repete Vitorino Ramalheira, que passou metade da sua vida profissional à procura do bacalhau e que naquele ano de 66, como testemunhou Lemieux, chegou a temer pela vida de outros dois homens, que se perderam no nevoeiro.  
Perante estes riscos, não espanta que, até meados do século XX, em várias comunidades do litoral, as mulheres destes homens tivessem por hábito vestir-se de preto quando eles partiam, e cobrir com panos todo o mobiliário do lar, dormindo, com uma enxerga, no chão. Era como se toda a casa se enlutasse, solidária com as provações deles, por seis meses. Mais do que um mau pressentimento, era uma espera sofrida, por um regresso que nem sempre aconteceu.
Quando as más notícias chegam a casa
Apesar de haver documentação de várias instituições envolvidas neste “desígnio nacional” que era o abastecimento do país com um dos seus alimentos favoritos e de melhor conservação, não se conhece com exactidão o número de baixas na frota portuguesa da pesca do bacalhau durante o Estado Novo. Álvaro Garrido, que é também programador do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI), afirma que, da consulta de documentação do Grémio, se contam, em vários anos, três a cinco mortos por campanha. Mas explica que o nível de sinistralidade mortal até tem sido maior nos arrastões. Em todo o caso, o facto é que, se se conhecem bem os casos excepcionais, como o afundamento do Maria da Glória, por um submarino, na II Guerra, que matou 36 homens, a grande maioria deles da Fuzeta (Olhão), até hoje ninguém soube dizer quantos, quem eram e de onde partiram esses homens que ficaram nesses mares do Fim do Mundo até ao ocaso da pesca à linha, que coincidiu, em 1974, com o 25 de Abril. 
A revolução pôs os homens em alvoroço. Depois de uma greve em que exigiam que o salário passasse a ser fixo e não dependente do que pescassem, nesse ano, dois dos três últimos navios com dóris, o Ilhavense e o São Jorge, foram ao fundo ao largo da Terra Nova. Muitos dos velhos navios à vela tinham sido abatidos assim, após incêndios alegadamente provocados a mando dos armadores, em que todos, como aconteceu nestes casos, saíam ilesos. E quis a ironia da história que o último exemplar deste tipo de pesca — que no Estado Novo se manteve em paralelo com tecnologias mais modernas e predatórias como o arrasto — se chamasse Novos Mares. Símbolo do fim de uma era, este atravessou o estreito de St. John’s a 24 de Julho de 1974, a caminho de Aveiro, onde foi adaptado para a pesca com redes. Nesse ano, as imagens de dezenas de homens espalhados pelo mar, cada um no seu bote, passou a ser uma memória. Ao mesmo tempo vibrante e triste, pela lembrança dos que por lá ficaram.  
Só na terra de Agonia Cancuja, as Caxinas, ainda hoje demasiadas vezes notícia pelos seus náufragos, contam-se em mais de uma dezena os nomes que a Revista 2 foi descobrindo, numa curta pesquisa, apenas em conversa com alguns pescadores. Várias famílias têm um antepassado que não regressou vivo de uma actividade que, muito dura, era ainda assim bem mais rentável do que a pesca local, feita então com barquinhos pouco maiores do que os dóris usados nos Grandes Bancos. Lugar de recrutamento de cerca de mil bacalhoeiros, esta zona, com a vizinha Póvoa de Varzim, foi uma fonte importante de mão-de-obra, mas foi apenas uma das muitas comunidades piscatórias de norte a sul e das ilhas que, ao longo de quatro décadas, entregaram cerca de 20 mil dos seus àquela vida. 
A cada casa, as más notícias podiam chegar, choque difícil de imaginar, com o navio. Foi isso, segundo Santareno, que aconteceu com a açoriana Rosa Bailão, que lançara foguetes para dar as boas-vindas ao marido, Jorge, que só depois percebeu que se perdera no mar. Mas normalmente elas corriam mais depressa, à velocidade de um telegrama. Em 1965, criança ainda, o caxineiro José Marafona soube pelas lágrimas da mãe — revê-a de papel na mão, grávida, 12 filhos — que o pai, José Gomes Marafona, não regressaria. O corpo, admite a família numa dúvida alimentada pela distância e pelo tempo que entretanto passou, terá sido sepultado na Gronelândia. Como o do ilhavense Manuel Gonçalves Bilelo, de cuja sepultura o Museu Marítimo de Ílhavo guarda uma fotografia tirada por um antigo comandante do Gil Eannes
A história destes homens não será muito diferente da de outros que, até esse ano de 1966, eram levados para um porto próximo. Só depois de Dionísio Esteves, os corpos dos que morriam “começaram a ser trazidos de volta”, explica Fernando Esteves, facto confirmado por Vitorino Ramalheira. O Gil Eannes, que funcionava como navio-hospital mas também como capitania flutuante, “ainda não estava por perto quando se deu o acidente com o Dionísio. Tive de tomar uma decisão”, relembra este homem, natural de Ílhavo, descendente de uma linhagem de marinheiros e filho de outro famoso capitão de navios bacalhoeiros, João Ramalheira.   
Um dos amigos do capitão Vitorino Ramalheira, Francisco Teles Paião, comandava o Rio Antuã em 1962 quando, a 7 de Setembro, dois ou três dias antes da viagem de regresso para Portugal, perdeu o seu melhor pescador. Chama-se José Francisco Marques, Zé da Ferrucha, este caxineiro de 39 anos que viu o seu dóri carregado afundar sem que alguém lhe desse a mão. Foi no Mar da Barrinha, na costa oeste da Gronelândia, precisa o irmão Joaquim, 77 anos bem conservados, que não esconde que a ambição que elevara o Zé da Ferrucha à condição de “special” do Rio Antuã — atribuído a quem pescasse muito mais bacalhau do que os outros — pode bem ter sido o que levou à morte. A ele como a outros, levados ao fundo do mar por uma ganância estimulada pelo sistema de remuneração variável. “Nós contribuíamos para isso, ao afixar a tabela com a classificação de cada um, ao longo da viagem”, assume hoje o capitão Ramalheira. 
Naquele dia, como habitualmente, José Francisco Marques enchera o bote. Afastara-se dos outros, como muitas vezes fazia, e aparecera depois carregado ao pé do dóri do irmão, que ainda pescava. Foi seguindo viagem para o navio-mãe, a remos, quando o tempo virou, trazendo névoa e um vento que levantou a marola da água. Confiante, o caxineiro despachara a companhia de outro pescador que se aproximou dele, mais leve de carga. Seguia sozinho, quando, de longe, o irmão ouviu os gritos, três, cuja origem só percebeu quando, chegando ao Rio Antuã, viu que só o Zé da Ferrucha não estava ainda a bordo. De pouco valera a Joaquim aquele “Oxalá não seja do meu lado” que a sua cabeça inventara minutos antes, ao ouvir o socorro longínquo, no mar. E de pouco valera a José a sua destreza. Nos mares gélidos da Gronelândia, a morte chega rápida e ele, sabendo-o, amarrou um pulso ao balão dos seus aparelhos de pesca.
Foi assim que o encontraram, ao Zé da Ferrucha — bacalhoeiro desde 1938 — naquele ano em que pela primeira vez, no Rio Antuã, não pescara com o dóri número 13, o do dia da Senhora de Fátima. Os barcos foram nessa viagem sorteados pelo capitão e calhou-lhe o 42. Anos antes, numa colecção de cromos sobre seres vivos que fez a delícia da criançada, este era o número do bacalhau, uma estampilha “marcada”, por ser difícil de encontrar. E ficou tão famosa aquela caderneta que, deste então, e como recorda o irmão, no jogo do loto, o 42 é cantado como “O Bacalhau”, nas Caxinas. Mas de nada valeu este aparente golpe de sorte ao exímio pescador. 
José Francisco Marques deixou mulher e quatro filhos. Longe de casa, o seu corpo seguiu para o navio-hospital Gil Eannes, que o transportou para o porto da localidade de Holsteinsborg, actual Sisimiut, na Gronelândia, para ser enterrado. Este porto com pequeno hospital, de difícil entrada, segundo Santareno, tinha “fama de perigoso”, por causa de várias pedras que dificultavam a navegação. Mas foi bastante utilizado pela frota portuguesa.
A memória da Grande Pesca
A perda do pai não demoveu Manuel Marques, então com 17 anos, da vontade de experimentar a pesca do bacalhau. E foi pela mão do tio Joaquim que, na Primavera de 1963, entrou naquele mesmo barco de onde José fora levado num caixão, sete meses antes. O capitão Francisco Teles Paião, que declinou um convite da Revista 2 para um depoimento sobre estes episódios, tê-lo-á recebido a bordo com uma amabilidade estranha ao relacionamento habitual, distante, entre oficiais e pescadores. “Ele era duro, mas tinha bom coração”, descreve o caxineiro, que, pelo Natal, mantém o hábito de contactar aquele homem de Ílhavo, outro descendente de uma linhagem de capitães cujo pai comandava então o Argus, um dos dois barcos — o outro é o Santa Maria Manuela — que Aníbal Paião, dono da Pascoal & Filhos, comprou recentemente, para o recuperar e manter, assim, na esfera da família, a memória da Grande Pesca.
Como quase todos os bacalhoeiros, Manuel Marques também mantém fresca, como que conservada em sal, a sua memória daqueles anos. Principalmente do de 1967, em que um problema grave nos pulmões o obrigou a uma cirurgia em St. John’s e posterior convalescença no Gil Eannes, onde chegou a estar em isolamento. Já quase recuperado, soube que o navio-hospital, que então navegava ao largo da Gronelândia, ia passar por Holsteinsborg, e pediu que o deixassem ir a terra, para ver a sepultura do pai. Um grupo, que incluía entre outros Jaime Pontes, outro caxineiro, pescador no Avis, e Manuel Agonia Maio, da Poça da Barca, e tripulante do Dom Deniz, foi então enviado à pequena localidade. Jaime recorda bem que lhes deram tinta e madeira, para que, se fosse necessário, recuperassem as cruzes das sepulturas de portugueses — cerca de dez, doze, Manuel já não sabe precisar. Nos últimos anos, os filhos dele contactaram a paróquia de Sisimiut, de onde lhes disseram que as campas já não estavam identificadas.
Há dois anos, um canadiano com raízes nas pequenas ilhas francesas de Saint Pierre e Miquelon, no Sul da Terra Nova, foi contactado a partir de Portugal por um amigo, Pedro Pinto — antigo capitão de navios bacalhoeiros e actual coordenador de operações da Agência Europeia de Controlo das Pescas — e pelo comandante da corveta António Enes, da Marinha. De partida para mais uma acção de fiscalização nas águas da Organização das Pescas do Atlântico Noroeste (NAFO, em inglês), pretendiam ambos fazer uma cerimónia militar de homenagem aos portugueses e Jean-Pierre Andrieux, empresário e estudioso da nossa presença nesta região, pareceu-lhes o homem certo para a organizar.
A Andrieux, a parada e a deposição de flores, em Agosto de 2012, soube-lhe a pouco, mesmo que repetida anualmente, como acontece desde então. Há dezenas de anos que o canadiano acompanha os portugueses, fruto de uma amizade que nasceu nos inícios de 1980, à mesa dos oficiais do Vimeiro, que aportara em Saint Pierre. Foi ali que o empresário, dono de um hotel, e a mulher, Elisabeth, conheceram um dos seus grandes amigos, Francisco Paião, que comandava então esse outro navio. Ele é um de vários portugueses, quase todos da região de Aveiro, que fazem questão de visitar todos os anos, em longas férias que vêm repetindo há um quarto de século e que os trouxeram a Portugal em Março e Abril deste ano. Mas desta vez, para além da vontade de rever Paião, Ramalheira e outros, o casal trouxe na bagagem um propósito maior: o de garantir, este ano ainda, esperam, uma homenagem perene aos marinheiros de que tanto ouviram falar. 
“A memória daqueles pescadores tem de ser preservada”, insiste este canadiano de 66 anos que ouviu as histórias da Frota Branca nesses jantares em que provou o vinho verde e outros sabores que, terminada a moratória de pesca nos Grandes Bancos, voltaram em 2010 a atravessar o Atlântico com os (agora poucos) navios bacalhoeiros. No novo hotel que entretanto abriu em St. John’s, há colecções de peças pertencentes aos serviços de mesa de muitos dos antigos lugres e, na biblioteca, há uma miniatura à escala do Gazela Primeiro, mítico veleiro que, em 1969, fez a sua última viagem à pesca do bacalhau. Em sua casa, para além de bóias do Gil Eannes, guarda umas 40 mil fotografias de navios, centenas delas documentando a presença lusa nas águas da Terra Nova. “Isto representou uma mudança também na minha vida e na da minha família. Portugal passou a fazer parte de nós”, assume este homem que dedicou um dos volumes da sua obra Acidentes e Naufrágios na Terra Nova e Labrador ao período entre 1940-1980 e, especialmente, à Frota Branca.  
Conhecido o homem, percebe-se porque se meteu Andrieux, nos últimos anos, num esforço de angariação de fundos para construir um monumento aos portugueses enterrados em St. John’s. Em Outubro, organizou um jantar, com comida e música portuguesa, e os seus conterrâneos pagaram cem dólares (quase 66 euros) por cabeça para participar. Apesar de problemas pontuais, de alguma discriminação testemunhada por vários pescadores noutros tempos, passados estes anos, “é forte e boa a memória dos portugueses, principalmente do tempo da Frota Branca, nas décadas de 50 e 60, em que eles chegavam aos milhares à cidade”, nota o empresário. O ar humilde, as camisas de padrão axadrezado, os jogos de bola com que se entretinham no cais que os abrigava das tempestades nos Bancos e o ar de museu vivo daqueles veleiros, linhas de mastros a marcar o horizonte, criaram uma aura. “Que não foi esquecida”, acrescenta, justificando assim os 7500 dólares angariados.  
A estátua, cujo desenho ainda está a ser pensado, vai ser construída nos próximos meses em Portugal e viajará para a Terra Nova como aqueles que vai homenagear: num navio bacalhoeiro. No cemitério de Mount Carmel, será uma marca perene junto de sepulturas sem nomes. “É triste não estarem identificados”, lamenta o empresário que escreveu sobre contrabandistas de álcool durante a lei seca, sobre as ilhas Francesas onde nasceu, sobre os Grandes Bancos de pesca e que, no ano passado, publicou The White Fleet — An History of the Portuguese Handliners. É o seu contributo para a história de uma saga que inspirou grandes obras como A Campanha do Argus, de Alan Villiers (livro de 1951, que acaba de ter a sua terceira reedição, uma parceria da Cavalo de Ferro com o MMI), e que apaixonou também o cinema, como se pode ver em Captain Corageous (1937), filme a partir da obra homónima de Rudyard Kipling que valeu a Spencer Tracy um Óscar de melhor actor pelo papel de Manuel, um pescador português.  
A atracção da Sétima Arte pelos veleiros portugueses foi imensa. Villiers filmou (e fotografou) uma das viagens do mítico Argus, um veleiro construído no século XIX, e, entre vários outros, George Sluizer gravou em 1967 para a National Geographic o documentário The Lonely Dorymen, passado nos navios José Alberto e Vila do Conde. Mas a película de Lemieux, filmada um ano antes a bordo doSanta Maria Manuela, acabou por ter outro significado, ao deixar para a posteridade uma imagem do lugar onde foi enterrado Dionísio Esteves, o que o retirou do anonimato a que o tempo o votara. Graças ao plano do cemitério, a homenagem aos portugueses vai ter um rosto, o do jovem bacalhoeiro de Vila Praia de Âncora que morreu há 48 anos.
O pai de Dionísio também andara nos Grandes Bancos. E Fernando acabou por ir para lá em 1967, num arrastão, escapando aos trabalhos árduos da pesca à linha e, como era benesse da legislação desde 1927, livrando-se do serviço militar. Escolheu esse outro mar para fugir ao Ultramar, onde a morte espreitava no mato. Andou por ali mais do que os sete anos que a lei equivalia à tropa, marcou o corpo com cicatrizes, perdeu o baço, mas pôde visitar o irmão, uma vez. De outras que tentou, “a neve no monte”, recorda, impedia-o de perceber onde estaria enterrado. E depois a vida levou-o para outros mares, os de África, onde correu o mapa até ao cabo da Boa Esperança, antes de se fixar de novo na pesca costeira, na terra natal.
Reformado, Fernando Esteves acalenta agora a esperança noutra viagem, que o leve a ver de novo a sepultura do irmão. Em Março deste ano, Jean-Pierre Andrieux esteve com ex-bacalhoeiros em Caminha, a convite da câmara local — que assim lhe agradeceu o gesto em memória de Dionísio — e fez questão de o convidar a participar na homenagem que está a organizar. O canadiano garante que se arranjará maneira de custear a deslocação deste homem. Conheceram-se num almoço que terminou com um bolo, um doce em forma de bacalhau salgado-seco, e no qual não faltou, a abrir, a chora, uma sopa de bacalhau antes servida no rancho da proa dos navios e hoje transformada em iguaria gourmet. Se for verdade o que diziam os antigos, ao comê-la, Fernando talvez tenha garantido o seu bilhete de regresso à Terra Nova. 

Ao meu bisavô Abel, que em 1910 já andava pela Terra Nova e que para lá levou meia dúzia de filhos, tendo perdido um deles no mar, nessas viagens. À Cândida, que não conheço e que nunca conheceu o pai, Dionísio Esteves. Ao meu pai, Abel, que, como a maioria, felizmente, teve a sorte de ir e voltar.

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