Durante anos o antropólogo Luís Martins viveu com famílias de pescadores e embarcou em diferentes fainas. Em entrevista partilha histórias do mundo piscatório português feito por homens e mulheres «com estratégia». Isto num sector onde a tecnologia já tem lugar de destaque, o que não afasta a dureza de uma profissão com «perigos» e com «um número decrescente de jovens e barcos no limite das suas capacidades».
Café Portugal - A pesca em Portugal continua a ser uma arte muito artesanal?
Luís Martins - Tenho dificuldade em fazer uma síntese das pescas em Portugal e utilizar o termo artesanal por razões diversas. Hoje um barco de cinco metros pode não precisar, mas o armador facilmente adquire um GPS [Sistema de Posicionamento Global]. O GPS pode ser pequeno mas tem a mesma eficiência de outros maiores, ou seja, vai ao lugar onde há peixe. Antes, os pescadores em dias de nevoeiro sentiam-se completamente perdidos. Podiam estar duas horas a procurar a baliza, ou seja, o local de início da arte. Antes os pescadores guardavam na memória os lugares de pesca, os sítios por onde podiam passar, os sítios perigosos. Anotavam em folhas soltas. O mestre de um barco, que em geral é também o proprietário, que pescasse com covos, tinha de memória uns 15 lugares onde depositava os covos. Nem precisava de mais. O GPS é um instrumento que alterou profundamente a relação presa/predador. O predador torna-se muito mais eficiente.
C.P. - Podemos então dizer que o GPS, introduzido nas pescas na década de 80 do século XX, revolucionou o sector.
L.M. - Entre outros aspectos. Há uma coincidência temporal de acontecimentos, ligados ao esgotamento dos mares, mas também à renovação tecnológica. O GPS vem facilitar muito procura, sem ele demorava-se muito tempo a encontrar os locais com peixe. Mas depois há todo um conjunto de outros elementos. Por exemplo, uma rede de pesca dos anos 1970, precisava, com grande regularidade, de ser trazida para terra, ser limpa, ser encascada. Encascar é ferver a rede dentro de um grande caldeirão com uma casca de árvore. É uma técnica que permitia preservar melhor a rede, servia para lhe dar uma cor acastanhada e camuflar. Com o tempo, a rede perde essa cor e fica mais clara e o peixe percebe-a e consegue fugir. Mas surgiram materiais mais resistentes e hoje quase já não é preciso encascar uma rede, nem emendá-la. Muitas vezes a rede vai ao mar e fica lá vários dias. Hoje compra-se uma rede feita. Há um percurso de tecnologia que altera a relação de percepção que se tem com os mares e com actividade.
C.P. - O sector das pescas tem dificuldade de recrutamento de pescadores?
L.M. - Os primeiros contactos com o mundo das pescas foram em comunidades como Viana do Castelo, Póvoa de Varzim. São comunidades que passaram por transformações fortes. Em Viana do Castelo, quando comecei a minha investigação há muitos anos, já havia problemas de recrutamento. A inevitabilidade de serem pescadores já não se punha. Há um aumento da escolaridade, há um mercado mais aberto às suas potencialidades. Não há muita população jovem e há barcos no limite das suas capacidades. Se faltar um membro da companha, ou seja os tripulantes, o barco não sai.
C.P. - Porque fogem os jovens do mar?
L.M. - «Eu não quero que o meu filho seja pescador porque é uma vida dura». Esta expressão é muitas vezes ditas pelos pais e é bem verdade. Vai-se para o mar de noite e, num bom dia volta-se a terra pelo 12h00,13h00. Mas há dias que se passam no mar. Vem-se à lota descarregar e volta-se ao mar. É uma vida dura e perigosa.
C.P. - A arte de pescar requer um pensamento muito estratégico?
L.M. - Sim, há um pensamento permanente por parte dos mestres para traçar uma estratégia de acção. Por exemplo, num cerco à sardinha, o barco tem de procurar a sardinha. Se encontra cardume, lançam a rede. Mas podem estar a procurar algumas horas. No entanto, o mestre tem conhecimento adquirido de outros anos, pelo que se está a apanhar noutros portos. Com essa informação delineia uma estratégia para a pesca. A estratégia existia desde sempre. Antes do GPS, um pescador tentava esconder onde pescava. O lugar da pesca era absolutamente sigiloso. Daí o nome de alguns mares, como o sem camisa, um mar onde não se pescava nada, o mar do pargo, um local onde havia muito pargo. Hoje é diferente porque, pelo radar, é mais fácil saber onde cada um está a pescar. Antes escondiam-se no mar. Sabiam de um local com peixe, mas se estavam a ser seguidos, fugiam desse local e dirigiam-se a outro, por exemplo. Isto é o segredo da arte. Mas depois há também a crença. Cada pescador tem a sua crença de como se pesca melhor.
C.P. - Podemos dizer que estamos perante uma população em constante procura de conhecimento?
L.M. - O pescador é um agente mais móvel que o agente rural, o agricultor, porque se desloca de barco entre portos. Os pescadores estão fartos de viver no mar e vêem todos os dias um porto. No entanto, sempre que chegam ao porto a primeira coisa que fazem, sempre que possível, é ir aos outros barcos espreitar as artes. E todos os pescadores fazem isso. Se passam num porto e sabem que determinado barco está a pescar muito bem, vão ver como é a arte [a técnica de pesca] desse barco.
C.P. - Portugal tem uma forte tradição pesqueira, com diferenças regionais. Pode-nos salientar algumas?
L.M. - Há diferenças acentuadas. Muita rivalidade. Podemos construir uma imagem assim: Cada localidade tem a sua forma de fazer a caldeirada e discute bravamente qual a melhor. As diferenças passam pela forma de falar, as terminologias. Há diferenças lexicais bastante visíveis. Mais visíveis até em zonas de maior concentração de comunidades piscatórias. No Norte temos mais concentração de comunidades piscatórias. Mesmo aí, apesar da densidade, as diferenças na forma de falar são muitas significativas, até na designação das artes de pesca. No entanto, estas diferenças tendem a esbater-se por causa do ensino das pescas. A obrigatoriedade de passar pela escola de pesca criou alguma homogeneização lexical mas que não derrubou essas diferenças mesmo em comunidades vizinhas.
C.P. - A mulher continua a ter um papel importante?
L.M. - Há muito trabalho feito pelas mulheres mas depende das regiões. Também aí, Portugal difere muito. Nos Açores, a tendência é para a mulher não trabalhar nas artes. No Norte, na Póvoa de Varzim, a mulher faz parte da companha, organiza-a, faz pagamentos e vende o peixe. Mas, ali ao lado, em Viana do Castelo, nem pensar em mulher trabalhar na companha.
C.P. - Desde há muitos anos que estuda as artes da pesca em Portugal. Parte desse trabalho inspirou a exposição «Artes de Pesca. Pescadores, normas, objetos instáveis», patente no Museu de Etnologia, em Lisboa. O que se pode esperar desta exposição?
L.M. - A exposição mostra objectos da pesca, vídeos sobre as diferentes artes e fotografias. Há duas campanhas de recolhas de objectos. Uma nos anos 1960 em que pessoas que trabalhavam no museu, investigadores, traziam para o museu alguns objectos. Dessa primeira campanha destacam-se objectos de Lino da Silva, investigador que fez uma tese sobre armações fixas para a pesca do atum, as almadravas. Lino da Silva estudou no Algarve e de lá trouxe uma série de artes de pesca que estão aqui expostos. Na segunda campanha – desde 2004 – estabelecemos estratégia em duas dimensões. Uma fazendo entrevistas e fazendo filmes onde pedimos explicações de como funciona a arte, em que ano foram construídos os artefactos e contactámos algumas capitanias e estabelecemos acordos de colaboração para que «transferissem» para o museu algumas das artes apreendidas e cujos donos não revindicaram e conseguimos ter esses objectos expostos. Temos a exposição subdividida por processos, por artes de pesca, tais como apanha, arremesso, linhas e anzóis, armadilhas, redes e tracção com arrasto e sem arrasto. O espólio pertence ao Museu de Etnologia, excepto uma rede que foi emprestada.
Luís Martins - Tenho dificuldade em fazer uma síntese das pescas em Portugal e utilizar o termo artesanal por razões diversas. Hoje um barco de cinco metros pode não precisar, mas o armador facilmente adquire um GPS [Sistema de Posicionamento Global]. O GPS pode ser pequeno mas tem a mesma eficiência de outros maiores, ou seja, vai ao lugar onde há peixe. Antes, os pescadores em dias de nevoeiro sentiam-se completamente perdidos. Podiam estar duas horas a procurar a baliza, ou seja, o local de início da arte. Antes os pescadores guardavam na memória os lugares de pesca, os sítios por onde podiam passar, os sítios perigosos. Anotavam em folhas soltas. O mestre de um barco, que em geral é também o proprietário, que pescasse com covos, tinha de memória uns 15 lugares onde depositava os covos. Nem precisava de mais. O GPS é um instrumento que alterou profundamente a relação presa/predador. O predador torna-se muito mais eficiente.
C.P. - Podemos então dizer que o GPS, introduzido nas pescas na década de 80 do século XX, revolucionou o sector.
L.M. - Entre outros aspectos. Há uma coincidência temporal de acontecimentos, ligados ao esgotamento dos mares, mas também à renovação tecnológica. O GPS vem facilitar muito procura, sem ele demorava-se muito tempo a encontrar os locais com peixe. Mas depois há todo um conjunto de outros elementos. Por exemplo, uma rede de pesca dos anos 1970, precisava, com grande regularidade, de ser trazida para terra, ser limpa, ser encascada. Encascar é ferver a rede dentro de um grande caldeirão com uma casca de árvore. É uma técnica que permitia preservar melhor a rede, servia para lhe dar uma cor acastanhada e camuflar. Com o tempo, a rede perde essa cor e fica mais clara e o peixe percebe-a e consegue fugir. Mas surgiram materiais mais resistentes e hoje quase já não é preciso encascar uma rede, nem emendá-la. Muitas vezes a rede vai ao mar e fica lá vários dias. Hoje compra-se uma rede feita. Há um percurso de tecnologia que altera a relação de percepção que se tem com os mares e com actividade.
C.P. - O sector das pescas tem dificuldade de recrutamento de pescadores?
L.M. - Os primeiros contactos com o mundo das pescas foram em comunidades como Viana do Castelo, Póvoa de Varzim. São comunidades que passaram por transformações fortes. Em Viana do Castelo, quando comecei a minha investigação há muitos anos, já havia problemas de recrutamento. A inevitabilidade de serem pescadores já não se punha. Há um aumento da escolaridade, há um mercado mais aberto às suas potencialidades. Não há muita população jovem e há barcos no limite das suas capacidades. Se faltar um membro da companha, ou seja os tripulantes, o barco não sai.
C.P. - Porque fogem os jovens do mar?
L.M. - «Eu não quero que o meu filho seja pescador porque é uma vida dura». Esta expressão é muitas vezes ditas pelos pais e é bem verdade. Vai-se para o mar de noite e, num bom dia volta-se a terra pelo 12h00,13h00. Mas há dias que se passam no mar. Vem-se à lota descarregar e volta-se ao mar. É uma vida dura e perigosa.
C.P. - A arte de pescar requer um pensamento muito estratégico?
L.M. - Sim, há um pensamento permanente por parte dos mestres para traçar uma estratégia de acção. Por exemplo, num cerco à sardinha, o barco tem de procurar a sardinha. Se encontra cardume, lançam a rede. Mas podem estar a procurar algumas horas. No entanto, o mestre tem conhecimento adquirido de outros anos, pelo que se está a apanhar noutros portos. Com essa informação delineia uma estratégia para a pesca. A estratégia existia desde sempre. Antes do GPS, um pescador tentava esconder onde pescava. O lugar da pesca era absolutamente sigiloso. Daí o nome de alguns mares, como o sem camisa, um mar onde não se pescava nada, o mar do pargo, um local onde havia muito pargo. Hoje é diferente porque, pelo radar, é mais fácil saber onde cada um está a pescar. Antes escondiam-se no mar. Sabiam de um local com peixe, mas se estavam a ser seguidos, fugiam desse local e dirigiam-se a outro, por exemplo. Isto é o segredo da arte. Mas depois há também a crença. Cada pescador tem a sua crença de como se pesca melhor.
C.P. - Podemos dizer que estamos perante uma população em constante procura de conhecimento?
L.M. - O pescador é um agente mais móvel que o agente rural, o agricultor, porque se desloca de barco entre portos. Os pescadores estão fartos de viver no mar e vêem todos os dias um porto. No entanto, sempre que chegam ao porto a primeira coisa que fazem, sempre que possível, é ir aos outros barcos espreitar as artes. E todos os pescadores fazem isso. Se passam num porto e sabem que determinado barco está a pescar muito bem, vão ver como é a arte [a técnica de pesca] desse barco.
C.P. - Portugal tem uma forte tradição pesqueira, com diferenças regionais. Pode-nos salientar algumas?
L.M. - Há diferenças acentuadas. Muita rivalidade. Podemos construir uma imagem assim: Cada localidade tem a sua forma de fazer a caldeirada e discute bravamente qual a melhor. As diferenças passam pela forma de falar, as terminologias. Há diferenças lexicais bastante visíveis. Mais visíveis até em zonas de maior concentração de comunidades piscatórias. No Norte temos mais concentração de comunidades piscatórias. Mesmo aí, apesar da densidade, as diferenças na forma de falar são muitas significativas, até na designação das artes de pesca. No entanto, estas diferenças tendem a esbater-se por causa do ensino das pescas. A obrigatoriedade de passar pela escola de pesca criou alguma homogeneização lexical mas que não derrubou essas diferenças mesmo em comunidades vizinhas.
C.P. - A mulher continua a ter um papel importante?
L.M. - Há muito trabalho feito pelas mulheres mas depende das regiões. Também aí, Portugal difere muito. Nos Açores, a tendência é para a mulher não trabalhar nas artes. No Norte, na Póvoa de Varzim, a mulher faz parte da companha, organiza-a, faz pagamentos e vende o peixe. Mas, ali ao lado, em Viana do Castelo, nem pensar em mulher trabalhar na companha.
C.P. - Desde há muitos anos que estuda as artes da pesca em Portugal. Parte desse trabalho inspirou a exposição «Artes de Pesca. Pescadores, normas, objetos instáveis», patente no Museu de Etnologia, em Lisboa. O que se pode esperar desta exposição?
L.M. - A exposição mostra objectos da pesca, vídeos sobre as diferentes artes e fotografias. Há duas campanhas de recolhas de objectos. Uma nos anos 1960 em que pessoas que trabalhavam no museu, investigadores, traziam para o museu alguns objectos. Dessa primeira campanha destacam-se objectos de Lino da Silva, investigador que fez uma tese sobre armações fixas para a pesca do atum, as almadravas. Lino da Silva estudou no Algarve e de lá trouxe uma série de artes de pesca que estão aqui expostos. Na segunda campanha – desde 2004 – estabelecemos estratégia em duas dimensões. Uma fazendo entrevistas e fazendo filmes onde pedimos explicações de como funciona a arte, em que ano foram construídos os artefactos e contactámos algumas capitanias e estabelecemos acordos de colaboração para que «transferissem» para o museu algumas das artes apreendidas e cujos donos não revindicaram e conseguimos ter esses objectos expostos. Temos a exposição subdividida por processos, por artes de pesca, tais como apanha, arremesso, linhas e anzóis, armadilhas, redes e tracção com arrasto e sem arrasto. O espólio pertence ao Museu de Etnologia, excepto uma rede que foi emprestada.
Sara Pelicano; Fotografia - Luís Martins
Sem comentários:
Enviar um comentário