Os efeitos do mar na costa
de Esposende não são apenas um problema ambiental. A fúria destruidora do
Inverno deste ano deixou a descoberto, na praia de Belinho, vestígios
arqueológicos correspondentes a dois naufrágios. Os achados, que esta
quarta-feira serão apresentados pela autarquia, são partes da carga e do casco
de um navio holandês, do século XV ou XVI, e de ânforas de um navio romano,
correspondendo, neste caso, ao segundo naufrágio desta época descoberto neste
concelho.
Os destroços foram descobertos por quatro pessoas durante o Inverno, quando as notícias
relatavam o efeito destruidor das grandes tempestades nas praias deste e de
outros concelhos. Em Belinho, a norte da cidade de Esposende, em troca do areal
que roubou, o mar deixou uma oferenda preciosa aos arqueólogos e historiadores:
mais de 900 fragmentos da época romana, peças de madeira do navio holandês e, no caso deste, dezenas de pratos de esmola
em latão, duas centenas de pratos de baixela em estanho, pelouros (balas) de
vários calibres, entre outras peças, misturadas com pedra vulcânica usada para
lastro desta embarcação.
Entre os achados,
encontram-se peças conhecidas como pratos de Nuremberga ou dinanteries,
por também serem produzidos e importados de Dinant, na Bélgica. São peças
importantes não pela sua raridade – foram muito usados nas igrejas portuguesas
e existem, aliás, em várias colecções museológicas – mas pelo trabalho
decorativo. No Museu das Terras de Basto existe aliás um prato destes,
praticamente igual a um dos que foi agora encontrado em Esposende,
representando Adão, Eva e a inevitável serpente. Outro tem gravado o encontro
de São Jorge com o Dragão e não falta, nesta colecção arrojada pelo mar, um S.
Cristóvão, padroeiro dos viajantes.
Tal
invocação de nada valeu aos que seguiam naquele barco. Naufragaram numa zona
difícil da costa, com rochedos submersos famosos, como os Cavalos de Fão, um
perigo para navegadores mais distraídos ou atirados para perto da praia por alguma tempestade. O mesmo poderá ter acontecido à
embarcação da época romana que, pela carga, viria da Bética, província no Sul
da península bem servida, já na altura, pelo porto de Cádis. Desfez-se por ali,
no final do século I, deixando no fundo do mar uma carga de ânforas cuja forma
indica a zona em que foram produzidas.
Mais provas na costa
atlântica
Este naufrágio romano é o segundo já descoberto em Esposende. Há uma década, em
Marinhas, mais a sul, outros achados da Bética tinham sido encontrados mas,
então, foram pouco valorizados. Só nos últimos anos, uma equipa envolvendo os
arqueólogos municipais Ana Paula Brochado e Ivone
Magalhães, o investigador Rui Morais da Universidade do Minho, o consultor
Carlos Alberto Brochado de Almeida, arqueólogo jubilado da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, a catedrática em geologia Helena Granja, e um
especialista em química da Universidade do Minho, César Oliveira, apoiados por investigadores espanhóis,
conseguiram revelar a importância daquelas ânforas do início do século I, em
plena era de Augusto.
O
historiador Allan John Parker escreveu uma grande obra sobre os naufrágios em época
romana, mas listou apenas acidentes no Mediterrâneo, omitindo por completo a
navegação no Atlântico. Tal lacuna começa a ser preenchida, acredita Rui
Morais, para quem estes dois naufrágios “vêm contrariar essa tendência
historiográfica, mostrando que houve um comércio permanente na fachada atlântica”.
Que, aliás, remonta já aos finais da Idade do Bronze, insiste.
O
académico salienta que já se conhecia um número considerável de produtos de importação ao longo da costa, em castros e cidades de
época romana, o que pressupõe um comércio marítimo, fluvial, em grande escala,
dado o elevado custo do seu transporte por via terrestre, mas explica que
faltava encontrar vestígios relacionados com naufrágios, que demonstrassem que
chegavam a esta parte da península pelo mar. “Encontrar provas é uma situação
muito rara na costa Atlântica, e Esposende tem-nos brindado com estes
achados”, congratula-se este arqueólogo que, para além de ânforas Haltern
70, um tipo de ânforas de fundo em bico e semelhantes a muitas que se encontram
por toda a costa, Galiza acima, e até na Grã-Bretanha, identificou, nessa
primeira descoberta, um novo tipo de vasilhame.
A
essas novas ânforas, de fundo plano, chamou-lhes Rui Morais urceus.
Graças ao trabalho de análise de química orgânica de César Oliveira, percebeu-se que traziam
vinho adocicado com mel. As outras transportavam outros tipos de vinho e uma
conserva de azeitonas em vinho cozido, conhecido como defrutum.
O destino provável desta mercadoria, tal como a que transportava o segundo
navio romano agora descoberto – em cujas ânforas se detectou conservas de peixe e outros preparados piscícolas – seria Bracara, a Augusta,
cidade fundada no século I a.C. pelo imperador que morreu no ano 14, ou seja,
há precisamente, dois milénios.
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