Há "novas" histórias do passado da navegação em Portugal para contar. Um grupo de arqueólogos encontrou, junto ao Cais do Sodré, em Lisboa, restos de um navio de mercadorias, vestígios de importações exóticas e um enorme estaleiro naval.
Com base nestas descobertas recentes, os arqueólogos acreditam que os barcos chegavam até à praia fluvial que passava naquela que agora é a Praça D. Luís, junto ao Mercado da Ribeira, para serem reparados no grande estaleiro de madeira que foi encontrado, a seis metros de profundidade.
Depois de meses de trabalho, as escavações começaram a revelar, em Março, uma estrutura de madeira, com cerca de 300m2. A construção, “composta arquitetonicamente por quatro níveis de barrotes”, estaria implantada sobre uma antiga praia fluvial e manteve-se conservada até hoje num estado de submersão.
“Deparámo-nos com aquilo que pudemos já concluir tratar-se de uma estrutura de estaleiro, de reparação naval, que permitiria proceder a reparações junto da quilha ou em partes do navio que, enquanto estrutura navegante, estariam submersas”, explicou ao Boas Notícias o coordenador do projeto arqueológico Alexandre Sarrazola.
Uma pesquisa pela cartografia de Lisboa permitiu perceber que as gravuras de Georgio Braunio, elaboradas em 1572, ainda não registavam a presença de qualquer empreendimento do tipo junto ao Tejo.
“Porém, no painel de azulejos do Museu da Cidade, de 1699, constata-se já a presença de algumas estruturas de estaleiro nesta zona”, adianta Alexandre Sarrazola, apontando assim a delimitação do período de construção da descoberta para um intervalo entre os séculos XVI e XVII. Já as camadas mais recentes da estrutura remetem para o século XVIII.
Vestígios de importações exóticas
Às evidências juntam-se materiais vindos de além-fronteiras, característicos das importações exóticas dos Descobrimentos. Entre eles estão um pião, restos de fauna, solas de calçado, cordame, faianças dos sécs. XVI e XVII, mas também cachimbos de caulino “de produção holandesa” e “tradição otomana” e uma série de “elementos de botânica como, por exemplo, restos de frutos tropicais”, enumera o coordenador.
O espaço “está integrado naquilo que era, desde o século XVI, a área de tercenas [zonas ribeirinhas onde os estaleiros estavam implantados] da época de D. Manuel, no incremento da política de Descobrimentos, e em todas as suas repercussões políticas, económicas e culturais desse contexto da diáspora portuguesa da época moderna”, constata o arqueólogo.
Há registo de outras estruturas do género em Lisboa mas, de acordo com José Bettencourt do Centro de História e Além-Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa, “esta é sem dúvida a maior de todas e a melhor preservada, e o único estaleiro de construção naval”.
"Um puzzle que está só no início"
A epopeia arqueológica começou com um projeto para a construção de um novo parque estacionamento subterrâneo, cuja execução foi iniciada em 2009. Os profissionais da ERA-Arqueologia foram chamados para acompanhar o procedimento e perceber o que ali poderia eventualmente ser encontrado.
O CHAM está a colaborar com a ERA-Arqueologia no levantamen
to da estrutura do estaleiro para estudar as técnicas usadas na construção da estrutura mas, sobretudo, para identificar a origem das peças que foram "reutilizadas de navios e que aparecem na terceira camada do estaleiro”.
O investigador diz que tudo parece indicar que as peças que compõem a camada inferior da construção pertenceriam a um único navio mas, sublinha, “isto é um puzzle que está só no início ainda”.
“Em Lisboa apareceram, em várias escavações que foram efetuadas na zona ribeirinha, peças reutilizadas de navios, e sabe-se também pela própria documentação escrita que isso era uma atividade comum: o desmantelamento e a reutilização de madeiras”, explica José Bettencourt.
Estrutura terá de ser retirada para conservação
Perante a deteção da estrutura - que, para além de ser um grande contributo para a construção da história de Lisboa, está já a ser material de estudo por parte de inúmeras áreas de investigação, desde a arqueologia terrestre e náutica à iconografia e à botânica – surge um caráter de urgência de conservação da descoberta.
Há um consenso por parte dos profissionais envolvidos, do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico( IGESPAR) e de um conselho académico, na decisão de que a estrutura não poderá permanecer no local, até porque a degradação do madeirame “é iniciada quando exposta a oxigénio”, argumenta Alexandre Sarrazola.
A equipa trabalha em contrarrelógio, prevendo que nas próximas duas semanas esteja concretizado “um trabalho de registo exaustivo, barrote por barrote”. O processo inclui um registo ortofotográfico de cada uma das três camadas de barrotes, assim como uma descrição detalhada de cada barrote e das suas características e marcas.
Entretanto, algumas das peças de madeira vão ser depositadas “num ambiente de iodo que tem as mesmas características do ambiente de submersão onde as peças foram exumadas”, enquanto os elementos náuticos vão ser “preservados por amostragem em tanques, para que se proceda à sua conservação e restauro e à sua musealização”.
O projeto irá também ser divulgado a público e já há inclusive datas marcadas para as primeiras intervenções: no dia 17 de Maio vão ser comunicados os resultados preliminares da investigação no Museu da Cidade, onde vai ser também, no dia 18, projetado um documentário institucional a cargo da Videoteca de Lisboa. No dia 2 de Junho a ação de divulgação parte para o Padrão dos Descobrimentos.
por ANA AZEVEDO
Sem comentários:
Enviar um comentário